Reservatórios de Leishmania spp. nas Américas
Autores: André Luiz Rodrigues Roque e Ana Maria Jansen
Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz
Nas Américas, espécies do gênero Leishmania compreendem parasitas multi-hospedeiros de caráter zoonótico que são mantidos por uma grande diversidade de espécies de mamíferos na natureza. Ainda que a infecção por Leishmania spp. em mamíferos silvestres venha sendo estudada desde o início do século passado, a transmissão destes parasitos na natureza ainda representa um grande quebra-cabeças. Entre os numerosos conceitos propostos do que é “reservatório”, entendemos que este atributo não necessariamente se restringe apenas a uma espécie, mas sim a um conjunto de espécies responsáveis por manter um parasito na natureza, constituindo assim um sistema ao qual chamamos de “sistema reservatório” (Ashford, 1997). Este sistema reservatório é dinâmico e pode incluir espécies distintas nos diferentes recortes tempo-espaciais. Importante enfatizar que patogenicidade, virulência, ou resiliência não são atributos considerados na definição de reservatórios. Assim sendo, estudos sobre os ciclos de transmissão silvestre de Leishmania spp. obrigatoriamente devem ser conduzidos sob um foco multidisciplinar , uma vez que: (i) à exceção de L. infantum, as demais espécies de Leishmania são enzootias antigas que já incluíam numerosas espécies de mamíferos no seu ciclo de transmissão por milhões de anos antes da entrada de humanos nas Américas; (ii) As diferentes espécies de Leishmania que circulam nas Américas estão dispersas em diferentes habitats e biomas, exibindo alta diversidade genética, intra e interespecífica; (iii) esses parasitas continuam a ser mantidos e transmitidos na natureza apesar das geralmente baixas taxas de infecção relatadas em mamíferos silvestres e flebotomíneos; e (iv) existe uma enorme sobreposição de áreas na circulação de diferentes espécies de Leishmania e, muito provavelmente, alguns hospedeiros mamíferos são expostos a infecções mistas e/ou múltiplas de Leishmania spp.
Embora dezenas de espécies de mamíferos já tenham sido encontradas naturalmente infectadas por diferentes espécies de Leishmania e, portanto, possam ser considerados como hospedeiros destes parasitos, o “sistema reservatório” é constituído apenas por uma minoria destas. De fato, os diferentes métodos diagnósticos empregados, a capacidade de manter a infecção, os cenário ecológicos em que mamíferos silvestres infectados foram detectados indicam que apenas uma minoria dessas espécies hospedeiras podem ser consideradas potenciais reservatórios, ou seja, apresentam características favoráveis à infectividade do vetor. Para ser considerado um potencial reservatório (diferenciando-se daqueles que são hospedeiros), é essencial que seja demonstrado a persistência individual da infecção e/ou infectividade ou seja, potencial para transmitir o parasita a vetores (demonstrado por xenodiagnóstico positivo e/ou culturas de pele ou sangue positivas). Somente estudos locais, incluindo análises ecológicas e parasitológicas, podem confirmar uma espécie (ou espécies) como reservatórios de Leishmania spp em um determinado ambiente (Roque and Jansen, 2014).
Nas Américas, Leishmania spp. já foram encontradas infectando mamíferos silvestres de 7 ordens: Didelphimorphia, Cingulata, Pilosa, Rodentia, Primata, Carnivora e Chiroptera. Didelphimorphia é uma ordem autóctone de mamíferos, e espécies do gênero Didelphis estão entre as mais investigadas em estudos de campo devido à sua grande abundância em ambientes antropizados. De fato, Didelphis spp. são considerados mamíferos sinantrópicos e indicativos de áreas perturbadas. Estudos a campo e experimentais apontam que pelo menos D. marsupialis e D. albiventris são potenciais reservatórios de L. infantum, L. braziliensis, L. amazonensis, L. guyanensis e L. panamensis. Uma espécie de tatu, Dasypus novemcinctus (ordem Cingulata) é o único hospedeiro não humano do qual L. naiffi foi isolada e pode ser considerado um potencial reservatório dessa espécie de parasito. A ordem Pilosa inclui tamanduás e preguiças: Tamandua tetradactyla é a única espécie de tamanduá encontrada naturalmente infectada por espécies de Leishmania (L. amazonensis, L. guyanensis e L. infantum). A espécie de preguiça Choloepus didactylus é um potencial reservatório de L. guyanensis, enquanto outras espécies de preguiça são hospedeiras de diferentes espécies de Leishmania, especialmente aquelas mais relacionadas a Endotrypanum sp., como L. colombiensis e L. equatorensis. Roedores são incluídos na ordem mais diversa e dispersa de mamíferos nas Américas e é nesta ordem que são descritas infecções pela maior diversidade de espécies de Leishmania. Os roedores caviomorfos (subordem Hystricognathi) incluem espécies de Proechimys sp. e Thrichomys sp., já demonstrados como potenciais reservatórios de diferentes espécies de Leishmania. Por outro lado, apesar dos inúmeros estudos que apontam que “roedores são reservatórios de L. braziliensis, L. amazonensis e L. mexicana”, apenas algumas espécies de roedores, especialmente aquelas da subordem Hystricognathi, podem atualmente ser consideradas seus potenciais reservatórios. Especialmente considerando a diversidade de espécies de roedores, certamente tais generalizações estão longe de descrever a realidade. Em relação aos primatas não humanos, os estudos de Leishmania são raros, e apenas algumas espécies até o momento foram investigadas, algumas encontradas infectadas por L. amazonensis, L. shawi e L. infantum, demonstrando que estes mamíferos também estão expostos ao ciclo de transmissão de Leishmania spp. na natureza. Na ordem Carnivora, cães domésticos são importantes reservatórios de L. infantum, sendo infectivos ao vetor e responsáveis pela manutenção da transmissão em meios urbanos (Quinnell and Courtenay, 2009). Já seu papel como reservatório das demais espécies de Leishmania, bem como o papel dos gatos domésticos como reservatórios, ainda não está totalmente esclarecido.Canídeos selvagens são geralmente apontados como os reservatórios silvestres de L. infantum. No entanto, das espécies de canídeos selvagens mais abundantes nas Américas, apenas Cerdocyon thous (principalmente) e Speothos venaticus são considerados potenciais reservatórios de L. infantum, enquanto a persistência da infecção e/ou potencial para infectar vetores nunca foi demonstrada para a raposa-do-campo Pseudalopex vetulus, por exemplo. Morcegos (ordem Chiroptera) são animais longevos e os únicos mamíferos que voam, mas apenas recentemente passaram a ser investigados frente a infecções por Leishmania spp. Os poucos relatos apontam que sua importância é provavelmente subestimada, e L. infantum, L. braziliensis, L. amazonensis e L. mexicana são algumas espécies já encontradas infectando morcegos tanto de áreas silvestres, quanto urbanas.
A magnitude do problema de saúde das leishmanioses e sua complexa epidemiologia apontam para a necessidade de se esclarecer todos os elos de sua rede de transmissão (numa abordagem de “Saúde única”), a fim de se implementar estratégias efetivas de controle (Shaw, 2007). Geralmente, as medidas de controle de L. infantum se concentram nos cães, ignorando a possibilidade de que mamíferos silvestres e/ou sinantrópicos possam estar envolvidos no ciclo de transmissão, servindo como fonte de infecção para vetores em áreas peridomiciliares. Com relação às espécies de Leishmania responsáveis pelas formas tegumentares da doença humana, tem sido proposto que não apenas um único hospedeiro/reservatório está envolvido na manutenção desses parasitos, mas provavelmente várias espécies-chave com alta competência de transmissão são as responsáveis pela manutenção e transmissão destas espécies na natureza. Os fatores envolvidos na amplificação de focos enzoóticos (e consequente risco de infecções humanas) são temporais e regionalmente peculiares, e entender cada foco de transmissão é fundamental para apoiar estratégias eficazes e sustentáveis para a vigilância das Leishmanioses.
Referência: https://iris.paho.org/handle/10665.2/54129